Liberdade e sonho. As palavras que se fundiram em versos atravessaram as “duas vidas” da enfermeira-sambista Ivone Lara (1922 – 2018). Ou seria sambista-enfermeira? A artista, que usou musicoterapia no cuidado com pacientes psiquiátricos ou nas composições marcantes que a tornaram uma musicista singular, faria 100 anos de idade nesta quarta-feira (13).
“Ela é um caso único na história da música brasileira. Isso porque, antes de lançar o primeiro disco, Dona Ivone dedicou 37 anos no trabalho como enfermeira e assistente social no serviço de doenças mentais”, afirma o biógrafo Lucas Nobile. Ele é o autor de Ivone Lara: a Primeira-dama do Samba, livro que conta uma das histórias mais complexas de uma personagem longeva da cultura brasileira. Ela morreu com 96 anos de idade.
“Felizmente, a gente tem pelo menos dez grandes sucessos de Dona Ivone que são tocados até hoje em toda roda de samba. Ela teve sua obra gravada pelos maiores cantores e cantoras do Brasil. Isso não é nenhum exagero dizer”, afirma o biógrafo. A música Sonho Meu, por exemplo, integrou o histórico disco Álibi, de Maria Bethânia, o primeiro álbum de uma cantora brasileira a ultrapassar 1 milhão de cópias.
O desaguar
O escritor entende que a experiência na área da saúde tem uma influência central na música da Dona Ivone. “O trabalho de Dona Ivone era o da inclusão. Muitos pacientes ficavam abandonados pela própria família. Então Dona Ivone tinha um papel de fazer contato com essas famílias para quando eles saíssem dali. Esse olhar doce de cuidar de outra pessoa sempre foi muito presente. Então, pra mim, é muito natural que quando ela partisse para a carreira artística, todo esse humanismo fosse desaguar na obra dela.”
Dona Ivone é responsável por quase 200 composições. “Em uma quantidade considerável de músicas, ela fala de sonho e de imaginação. O trabalho com aqueles pacientes era com o inconsciente. Não é obra do acaso que a música mais conhecida dela tenha no título a palavra sonho”. As memórias faziam parte do enredo de seus sambas…
Eu vim de lá, eu vim de lá pequenininho
Mas eu vim de lá pequenininho
Alguém me avisou
Pra pisar nesse chão devagarinho
(Alguém me Avisou)
Um dos principais sucessos históricos da compositora é Cinco Bailes da História do Rio, que a consagrou como a primeira mulher a vencer uma disputa de samba enredo. “Este samba que ela fez em 1965 para a Império Serrano é considerado por muita gente como o mais bonito de todos os tempos. É uma parceria com Silas de Oliveira e Bacalhau”, afirma o escritor.
Era também a primeira mulher a tocar um instrumento e a cantar e a dançar de um jeito especial. “Ela está em outro patamar no sentido de criação artística”, diz. “Ela deve ser espelho e inspiração não só no centenário e como referência do feminismo negro. Devemos celebrar Dona Ivone todos os dias”, completa.
Informações Agência Brasil